segunda-feira, 23 de abril de 2012

transcriação de poema de Márcio-André

...

Apresento mais uma tradução de poema de Márcio-André, para o inglês. Embora eu chame o texto em questão de poema e ele claramente se sustente como tal, na verdade trata-se de fragmento do poema Mecanismos, do livro Intradoxos.

Vendo-o, portanto, como objetro autônomo, eu chamaria atenção para a última estrofe, que me parece, do seu lado, funcionar autonomamente qual perfeito poema imagista, conforme a analisei alhures[1]:

Como eu já havia observado, o verso de M-A, a borboleta reflete-se em asas (do poema Mecanismos, em Intradoxos), é uma verdadeira pedra-de-toque, uma das mais perfeitas imagens poéticas de que me lembro (baseado em preceito de Ezra Pound, para quem um dos melhores critérios de avaliação de um verso é sua força de fixação na memória), potentíssima em sua síntese de imagem, som e ideia (fano, melo e logopeia poundianas), em sua habilidade imagista de evocar uma imagem clara; não os sons, mas, contraditória e espantosamente, o silêncio do voo de borboleta; a ideia fantástica-órfica de um ser que, na realização de seu ato mais característico, define-se ao extremo até se tornar um e o mesmo com esse ato (“a imagem seria um pensar por dentro da coisa até chegar ao seu não e tornar-se, em sua negatividade, a coisa, ainda mesma e outra”, disse M-A em entrevista a Renato Rezende). Esse verso, por sua construção (as sílabas em “e” que compõe o verbo reflete-se – re-fle-te-se – se espelhando em movimento de sístole e diástole até se lançarem em voo via o pronome, sugestivamente dito reflexivo “se” [a esse respeito, o poema Jaguar, de Intradoxos, com seu verso refrão eu sou o jaguar, e ainda, desse livro, o verso jaguar-se em Mecanismos; vindo a calhar também a definição quase órfica de verbo reflexivo como “aquele que expressa a igualdade entre o sujeito e o objeto da ação”, o que, somando-se ao resto, creio, autoriza supor o uso proposital dessa forma, a ênclise, por M-A], somadas à preposição “em” que habilmente as liga ao “objeto indireto” “asas”, cuja imagem – “as” + “as”, as duas letras “s” cuja forma lembra talvez uma [duas] asa[s]), eu acrescentaria que esse verso, por sua construção, provoca toda uma ideia ou impressão de movimento, de voo, tão mais cinética – eu diria hipercinética, beirando um espaço e/ou movimentos fantásticos, surreais – do que seria uma foto ou mesmo uma cena filmada, todos os efeitos anteriores (fano, melo e logopáicos) concorrendo para instigar, gerar uma imagem mental plurisignificativa, de fato um vórtice poundiano do mais alto grau.

No que diz respeito à tradução, vejamo-la primeiro, depois passemos para algumas observações:

a] butter-flyes
— a lacustre-asa-jóia —
na faca
do capim-navalha

vegetal-água a
fatias de papel manteiga

b] a borboleta reflete-se em asas


a]borboletras
– the laky-wing-jewel –
in the swing
of the grasskiver

vegetable-water the
slices of writing paper

b] the butterfly reflects itself in wings


1. Como no poema em português o primeiro verso está em inglês, inverti essa escolha na tradução, ou seja, o primeiro verso no poema em inglês está em português, escolha que assegura a permanência para o leitor falante de inglês da mesma experiência que o leitor falante de português tem ao ler o poema original.

2. Ainda tendo em mente essa escolha, para entender minha tradução, é preciso antes tomar conhecimento da ligação de dependência entre o primeiro e o penúltimo versos, na qual parte do significado deste depende de que se conheça a tradução daquele; assim, só se apreenderá parte do significado, no contexto imagético do poema, da imagem “papel manteiga” – a importância de suas conotações de leveza, semitransparência, fragilidade e delicadeza também em contraste com imagens mais fortes como faca e navalha – se se conseguir associá-la à tradução literal de borboleta em inglês: “mosca-manteiga”, o que Guimarães Rosa já havia usado em "A borboleta ia passando manteiga no ar" do magistral conto Jardim Fechado[2], pressentindo talvez as possíveis analogias que teriam rendido ao termo sua origem naquela língua.

Na minha tradução, para manter o mínimo que fosse de tal ligação de dependência entre os dois versos, e de seu teor, optei pelo neologismo “borboletra”, no primeiro, o qual se liga, agora claramente, ao termo writing paper (“papel de escrita” ou “papel para escrever”), no penúltimo, de modo a inverter o contágio: enquanto no poema original o papel se contagia das conotações em torno de butter, assim “papel manteiga”, na tradução é a borboleta que se contagia da possibilidade da escrita inerente ao papel: borboletra.

3. Quanto a soluções sonoras, observo que as rimas entre “asa”, “faca” e “navalha” , eu as repliquei, na medida das minhas possibilidades, mantendo “asa” em inglês (wing) e substituindo o substantivo “faca” pelo verbo inglês swing (“balançar”, “oscilar”, “movimentar-se em vai-e-vem”), o que garante um substancial campo analógico ou relacional com o voo ou bater de asas da borboleta (considere-se que wing, ou “asa”, está contido em swing), o termo “faca” reaparecendo, de certo modo, em grasskiver, neologismo composto por grass + skiver, e que poderia ser traduzido aqui por “grama raspante”, skiver podendo significar “raspador” ou “faca”. No caso, optei por skiver no lugar talvez de knife por seu som seco e duro, sua tônica em “k”, sonoridade que reforça seu significado no poema e nisso replica o paralelo orgininal entre laCUstre e CApim,  tendo eu optado por laKY para o primeiro no lugar de lacustrine.

4. Para concluir, o último verso, o mais forte e importante, foi justamente o que apresentou tradução mais natural, praticamente linear; observe-se:

a borboleta reflete-se em asas

the butterfly reflects itself in wings

Onde a repetição de sílabas terminadas em “e” em português acontece também em inglês, com o acréscimo da repetição de sílabas iniciadas com “f”, letra que inicia, note-se, justamente o fly, ou “voar”, de butterfly, e com o acréscimo, a meu ver substancial, de reflects (paroxítona) ter sua tônica "refletida" em itself (também paroxítona). Perde-se, no entanto, em wing, a iconicidade já descrita de “asas”.


[1] in Xadrez de influências, portal Musa Rara, 2012, http://www.musarara.com.br/xadrez-de-influencias.

[2] in Ave, Palavra, Editora Nova Fronteira, 5. ed. 2001.

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