Apresento
mais uma tradução de poema de Márcio-André, para o inglês. Embora eu chame o
texto em questão de poema e ele claramente se sustente como tal, na verdade
trata-se de fragmento do poema Mecanismos, do livro Intradoxos.
Vendo-o,
portanto, como objetro autônomo, eu chamaria atenção para a última estrofe, que
me parece, do seu lado, funcionar autonomamente qual perfeito poema imagista,
conforme a analisei alhures[1]:
Como eu já havia observado, o verso
de M-A, a borboleta reflete-se em asas (do poema Mecanismos,
em Intradoxos), é uma verdadeira pedra-de-toque, uma das mais
perfeitas imagens poéticas de que me lembro (baseado em preceito de Ezra Pound,
para quem um dos melhores critérios de avaliação de um verso é sua força de
fixação na memória), potentíssima em sua síntese de imagem, som e ideia (fano,
melo e logopeia poundianas), em sua habilidade imagista de evocar uma imagem
clara; não os sons, mas, contraditória e espantosamente, o silêncio do
voo de borboleta; a ideia fantástica-órfica de um ser que, na realização de seu
ato mais característico, define-se ao extremo até se tornar um e o mesmo com
esse ato (“a imagem seria um pensar por dentro da coisa até chegar ao seu não e
tornar-se, em sua negatividade, a coisa, ainda mesma e outra”,
disse M-A em entrevista a Renato Rezende). Esse verso, por sua construção (as
sílabas em “e” que compõe o verbo reflete-se – re-fle-te-se –
se espelhando em movimento de sístole e diástole até se lançarem em voo via o
pronome, sugestivamente dito reflexivo “se” [a esse respeito,
o poema Jaguar, de Intradoxos, com seu verso
refrão eu sou o jaguar, e ainda, desse livro, o verso jaguar-se em Mecanismos;
vindo a calhar também a definição quase órfica de verbo reflexivo como “aquele
que expressa a igualdade entre o sujeito e o objeto da ação”, o que, somando-se
ao resto, creio, autoriza supor o uso proposital dessa forma, a ênclise, por
M-A], somadas à preposição “em” que habilmente as liga ao “objeto indireto”
“asas”, cuja imagem – “as” + “as”, as duas letras “s” cuja forma lembra talvez
uma [duas] asa[s]), eu acrescentaria que esse verso, por sua construção,
provoca toda uma ideia ou impressão de movimento, de voo, tão mais cinética –
eu diria hipercinética, beirando um espaço e/ou movimentos fantásticos,
surreais – do que seria uma foto ou mesmo uma cena filmada, todos os efeitos
anteriores (fano, melo e logopáicos) concorrendo para instigar, gerar uma
imagem mental plurisignificativa, de fato um vórtice poundiano do mais alto
grau.
No que diz
respeito à tradução, vejamo-la primeiro, depois passemos para algumas
observações:
a] butter-flyes
— a lacustre-asa-jóia —
na faca
do capim-navalha
vegetal-água a
fatias de papel manteiga
b] a borboleta reflete-se em asas
a]borboletras
– the laky-wing-jewel –
in the swing
of the grasskiver
vegetable-water the
slices of writing paper
b] the butterfly reflects itself
in wings
1. Como no
poema em português o primeiro verso está em inglês, inverti essa escolha na
tradução, ou seja, o primeiro verso no poema em inglês está em português, escolha
que assegura a permanência para o leitor falante de inglês da mesma experiência
que o leitor falante de português tem ao ler o poema original.
2. Ainda
tendo em mente essa escolha, para entender minha tradução, é preciso antes
tomar conhecimento da ligação de dependência entre o primeiro e o penúltimo
versos, na qual parte do significado deste depende de que se conheça a tradução
daquele; assim, só se apreenderá parte do significado, no contexto imagético do
poema, da imagem “papel manteiga” – a importância de suas conotações de leveza,
semitransparência, fragilidade e delicadeza também em contraste com imagens
mais fortes como faca e navalha – se se conseguir associá-la à tradução literal
de borboleta em inglês: “mosca-manteiga”, o que Guimarães Rosa já havia usado
em "A borboleta ia passando manteiga no ar" do magistral conto Jardim
Fechado[2],
pressentindo talvez as possíveis analogias que teriam rendido ao termo sua origem
naquela língua.
Na minha
tradução, para manter o mínimo que fosse de tal ligação de dependência entre
os dois versos, e de seu teor, optei pelo neologismo “borboletra”, no primeiro,
o qual se liga, agora claramente, ao termo writing paper (“papel
de escrita” ou “papel para escrever”), no penúltimo, de modo a inverter o
contágio: enquanto no poema original o papel se contagia das conotações em
torno de butter, assim “papel
manteiga”, na tradução é a borboleta que se contagia da possibilidade da
escrita inerente ao papel: borboletra.
3. Quanto a
soluções sonoras, observo que as rimas entre “asa”, “faca” e “navalha” , eu as
repliquei, na medida das minhas possibilidades, mantendo “asa” em inglês (wing)
e substituindo o substantivo “faca” pelo verbo inglês swing (“balançar”,
“oscilar”, “movimentar-se em vai-e-vem”), o que garante um substancial campo
analógico ou relacional com o voo ou bater de asas da borboleta (considere-se
que wing, ou “asa”, está contido em swing), o termo
“faca” reaparecendo, de certo modo, em grasskiver, neologismo
composto por grass + skiver, e que poderia ser
traduzido aqui por “grama raspante”, skiver podendo significar
“raspador” ou “faca”. No caso, optei por skiver no lugar
talvez de knife por seu som seco e duro, sua tônica em “k”,
sonoridade que reforça seu significado no poema e nisso replica o paralelo
orgininal entre laCUstre e CApim, tendo eu optado por laKY para o
primeiro no lugar de lacustrine.
4. Para
concluir, o último verso, o mais forte e importante, foi justamente o que
apresentou tradução mais natural, praticamente linear; observe-se:
a borboleta
reflete-se em asas
the
butterfly reflects itself in wings
Onde a
repetição de sílabas terminadas em “e” em português acontece também em inglês,
com o acréscimo da repetição de sílabas iniciadas com “f”, letra que inicia,
note-se, justamente o fly, ou “voar”, de butterfly, e com o acréscimo, a meu ver substancial, de reflects (paroxítona) ter sua tônica "refletida" em itself (também paroxítona). Perde-se, no entanto, em wing, a iconicidade já descrita de “asas”.
[1] in Xadrez
de influências, portal Musa Rara, 2012, http://www.musarara.com.br/xadrez-de-influencias.
[2] in
Ave, Palavra, Editora Nova Fronteira, 5. ed. 2001.
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