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Apresento
mais uma tradução de poema de Márcio-André, para o inglês. Embora eu chame o
texto em questão de poema e ele claramente se sustente como tal, na verdade
trata-se de fragmento do poema Mecanismos, do livro Intradoxos.
Vendo-o,
portanto, como objetro autônomo, eu chamaria atenção para a última estrofe, que
me parece, do seu lado, funcionar autonomamente qual perfeito poema imagista,
conforme a analisei alhures
:
Como eu já havia observado, o verso
de M-A, a borboleta reflete-se em asas (do poema Mecanismos,
em Intradoxos), é uma verdadeira pedra-de-toque, uma das mais
perfeitas imagens poéticas de que me lembro (baseado em preceito de Ezra Pound,
para quem um dos melhores critérios de avaliação de um verso é sua força de
fixação na memória), potentíssima em sua síntese de imagem, som e ideia (fano,
melo e logopeia poundianas), em sua habilidade imagista de evocar uma imagem
clara; não os sons, mas, contraditória e espantosamente, o silêncio do
voo de borboleta; a ideia fantástica-órfica de um ser que, na realização de seu
ato mais característico, define-se ao extremo até se tornar um e o mesmo com
esse ato (“a imagem seria um pensar por dentro da coisa até chegar ao seu não e
tornar-se, em sua negatividade, a coisa, ainda mesma e outra”,
disse M-A em entrevista a Renato Rezende). Esse verso, por sua construção (as
sílabas em “e” que compõe o verbo reflete-se – re-fle-te-se –
se espelhando em movimento de sístole e diástole até se lançarem em voo via o
pronome, sugestivamente dito reflexivo “se” [a esse respeito,
o poema Jaguar, de Intradoxos, com seu verso
refrão eu sou o jaguar, e ainda, desse livro, o verso jaguar-se em Mecanismos;
vindo a calhar também a definição quase órfica de verbo reflexivo como “aquele
que expressa a igualdade entre o sujeito e o objeto da ação”, o que, somando-se
ao resto, creio, autoriza supor o uso proposital dessa forma, a ênclise, por
M-A], somadas à preposição “em” que habilmente as liga ao “objeto indireto”
“asas”, cuja imagem – “as” + “as”, as duas letras “s” cuja forma lembra talvez
uma [duas] asa[s]), eu acrescentaria que esse verso, por sua construção,
provoca toda uma ideia ou impressão de movimento, de voo, tão mais cinética –
eu diria hipercinética, beirando um espaço e/ou movimentos fantásticos,
surreais – do que seria uma foto ou mesmo uma cena filmada, todos os efeitos
anteriores (fano, melo e logopáicos) concorrendo para instigar, gerar uma
imagem mental plurisignificativa, de fato um vórtice poundiano do mais alto
grau.
No que diz
respeito à tradução, vejamo-la primeiro, depois passemos para algumas
observações:
a] butter-flyes
— a lacustre-asa-jóia —
na faca
do capim-navalha
vegetal-água a
fatias de papel manteiga
b] a borboleta reflete-se em asas
a]borboletras
– the laky-wing-jewel –
in the swing
of the grasskiver
vegetable-water the
slices of writing paper
b] the butterfly reflects itself
in wings
1. Como no
poema em português o primeiro verso está em inglês, inverti essa escolha na
tradução, ou seja, o primeiro verso no poema em inglês está em português, escolha
que assegura a permanência para o leitor falante de inglês da mesma experiência
que o leitor falante de português tem ao ler o poema original.
2. Ainda
tendo em mente essa escolha, para entender minha tradução, é preciso antes
tomar conhecimento da ligação de dependência entre o primeiro e o penúltimo
versos, na qual parte do significado deste depende de que se conheça a tradução
daquele; assim, só se apreenderá parte do significado, no contexto imagético do
poema, da imagem “papel manteiga” – a importância de suas conotações de leveza,
semitransparência, fragilidade e delicadeza também em contraste com imagens
mais fortes como faca e navalha – se se conseguir associá-la à tradução literal
de borboleta em inglês: “mosca-manteiga”, o que Guimarães Rosa já havia usado
em "A borboleta ia passando manteiga no ar" do magistral conto
Jardim
Fechado,
pressentindo talvez as possíveis analogias que teriam rendido ao termo sua origem
naquela língua.
Na minha
tradução, para manter o mínimo que fosse de tal ligação de dependência entre
os dois versos, e de seu teor, optei pelo neologismo “borboletra”, no primeiro,
o qual se liga, agora claramente, ao termo writing paper (“papel
de escrita” ou “papel para escrever”), no penúltimo, de modo a inverter o
contágio: enquanto no poema original o papel se contagia das conotações em
torno de butter, assim “papel
manteiga”, na tradução é a borboleta que se contagia da possibilidade da
escrita inerente ao papel: borboletra.
3. Quanto a
soluções sonoras, observo que as rimas entre “asa”, “faca” e “navalha” , eu as
repliquei, na medida das minhas possibilidades, mantendo “asa” em inglês (wing)
e substituindo o substantivo “faca” pelo verbo inglês swing (“balançar”,
“oscilar”, “movimentar-se em vai-e-vem”), o que garante um substancial campo
analógico ou relacional com o voo ou bater de asas da borboleta (considere-se
que wing, ou “asa”, está contido em swing), o termo
“faca” reaparecendo, de certo modo, em grasskiver, neologismo
composto por grass + skiver, e que poderia ser
traduzido aqui por “grama raspante”, skiver podendo significar
“raspador” ou “faca”. No caso, optei por skiver no lugar
talvez de knife por seu som seco e duro, sua tônica em “k”,
sonoridade que reforça seu significado no poema e nisso replica o paralelo
orgininal entre laCUstre e CApim, tendo eu optado por laKY para o
primeiro no lugar de lacustrine.
4. Para
concluir, o último verso, o mais forte e importante, foi justamente o que
apresentou tradução mais natural, praticamente linear; observe-se:
a borboleta
reflete-se em asas
the
butterfly reflects itself in wings
Onde a
repetição de sílabas terminadas em “e” em português acontece também em inglês,
com o acréscimo da repetição de sílabas iniciadas com “f”, letra que inicia,
note-se, justamente o fly, ou “voar”, de butterfly, e com o acréscimo, a meu ver substancial, de reflects (paroxítona) ter sua tônica "refletida" em itself (também paroxítona). Perde-se, no entanto, em wing, a iconicidade já descrita de “asas”.