Neste texto eu gostaria de compartilhar uma experiência de leitura incomum. Trata-se de uma leitura do poema 1984: ano 1, era de Orwell, de Haroldo de Campos. Eis o poema:
enquanto os mortais
aceleram urânio
a borboleta
por um dia imortal
elabora seu vôo ciclâmen
Não procurarei, por ora, as causas exatas (isto é, estilísticas, imagéticas, entre outras) desta minha experiência, mas o fato foi que, ao percorrer estas poucas linhas, tive a sensação estranhíssima de estar lendo um texto do poeta Márcio-André, e não o poema, que eu já conhecia e relera inúmeras vezes, de Haroldo de Campos.
Mais estranho: não me pareceu este um dos melhores textos do poeta carioca. Era como se Haroldo de Campos, neste exemplo particularíssimo de sua multifária obra e estilística, tivesse previsto ou imitado a obra que apenas Márcio-André realizaria plenamente, gerações depois, ligando ao seu nome a expressão estética máxima daquele modo de fazer poético que eu descreveria, muito resumidamente e grosso modo, como a (des)construção cíclica de objetos, experiências e mundos a partir do mais peculiar e potente modo de se conjugar imagens, ideias e palavras (como coisas em si, a la Mallarmé e concretos) de que se tem notícia neste nosso início de século.
Vejamos, a título de aproximação e exemplo para o leitor que desconhece a obra do poeta radioativo, o poema O Reflexo, extraído do livro Intradoxos:
um mar modula nuvens de metal
na areia-lâmina o homem
ghia o reflexo de uma bicicleta pelo céu
o olho-vagem de um felino
retém o escheleto de uma árvore
rachaduras em sua retina
a lua é uma pedra de carne seca
encuanto o próprio carvão não aceita aderências de luz
um ângulo mais agudo – o avesso
o lado oco da morte
Vejamos agora, em zoom in imagético, trecho do poema Mecanismos, do mesmo livro:
a] butter-flyes
– a lacustre-asa-jóia –
na faca
do capim-navalha
vegetal-água a
fatias de papel manteiga
b] a borboleta reflete-se em asas
Interessa-nos o trecho – por si só um poema completo – como um todo, mas atentemos a princípio para a preciosidade e beleza sublimes da metáfora “a lacustre-asa-jóia”; para o que eu chamaria de símile ideogrâmico, “fatias de papel manteiga”, cujo mecanismo de base seria a elipse; finalmente para o último verso, inegável pedra-de-toque, para usar um termo caro a Haroldo.
De lado a sugestão de uma leitura comparada dos textos citados, retorno à minha estranha leitura do primeiro deles. De imediato notei que experimentava um modo de interpretação descrito por Harold Bloom em seu famoso e controverso A Angústia da Influência. Gosto muito de Bloom e me identifico com sua paixão pelas letras, mas como quase todo mundo, tenho minhas discordâncias com o bardólatra, o que não vem ao caso. Importa eu ter experimentado justamente a mais incomum e inacreditável das proporções revisionárias de sua teoria da poesia, aquela que ele denomina apophrades, ou retorno dos mortos, e explica da seguinte maneira:
A apophrades, os dias tristes ou desafortunados nos quais os mortos voltam a habitar suas antigas casas, ocorre aos poetas mais fortes, mas com os muito mais fortes dá-se um grande e final movimento revisionário, que purifica até mesmo esse último influxo… Pois todos eles conseguem um estilo que capta e curiosamente retém prioridade sobre seus precursores, de modo que se subverte a tirania do tempo, e pode-se acreditar, por momentos de pasmo, que estão sendo imitados por seus ancestrais.
A frase “por momentos de pasmo” resume à perfeição o que senti durante esta minha leitura do poema 1984: ano 1, era de Orwell, de Márcio-André.
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